Existe uma Itália guardada no imaginário e no coração de cada um dos brasileiros. Reverenciado na Europa e no mundo, o cinema italiano sempre foi para nós brasileiros, uma fonte inesgotável de referências. Através dos filmes, a Itália e os italianos tomaram de assalto nosso coração e nosso imaginário, criando um senso de intimidade, pertencimento e afeto que ignora solenemente as diferenças culturais e a distância oceânica entre os dois países.

Quem não se emocionou ou simplesmente se divertiu com as narrativas de mestres do cinema como Rossellini, Federico Fellini, Mario Monicelli, Ettore Scola, Giuseppe Tornatore e Roberto Benigni? Musas como Gina Lollobrigida, Claudia Cardinale, Sophia Loren e astros como Marcello Mastroianni arrancaram milhares de suspiros em terras brasileiras, pelo menos desde meados do Século XX.

Mario Monicelli

A Itália – tenhamos ou não tido o privilégio de conhecê-la, é como uma extensão imaginária de nossas fronteiras continentais. Há um significativo patrimônio narrativo, cinematográfico, audiovisual e literário que constrói estes laços, memórias, afetos. A partir, sobretudo, das narrativas audiovisuais, nos relacionamos com figuras que estão afetivamente, historicamente, culturalmente ligados a nós, figuras as quais identificamos e com quem nos identificamos. A empatia com estes personagens parece nascer de forma natural. Tal naturalidade certamente tem raízes profundas.

A multiculturalidade brasileira encontra na cultura italiana uma das suas mais importantes referências.  Ao longo de seis décadas (1870-1930), o Brasil recebeu cerca de um milhão e duzentos mil imigrantes italianos, vindos de diversas regiões da Itália, com destaque para o Vêneto, a Campânia, a Calábria e a Lombardia.  Esses emigrantes da Itália vieram para o novo mundo trazendo na bagagem memórias e o desejo de recriar aqui uma ‘nova vida italiana’. Os primeiros destinos foram as fazendas de café de São Paulo e os núcleos de colonização, em geral oficiais, que eram localizados no Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Paraná e Espírito Santo. Num segundo momento, as grandes cidades, em especial São Paulo e Rio de Janeiro, receberam não apenas os recém-chegados da Europa, como também uma reimigração. Muitos italianos saíram do campo e vieram para os grandes centros urbanos participar ativamente do crescente desenvolvimento das cidades, da indústria e do comércio brasileiro no início do século XX.

             Esse cenário urbano marcado por múltiplas facetas, rico culturalmente, pujante economicamente e socialmente efervescente não somente foi fundamental para a formação do Brasil contemporâneo, como também foi inspirador para a teledramaturgia brasileira. A sociedade brasileira há décadas se emociona com novelas e séries que apresentam um pedacinho da ‘Itália no Brasil” no início do século XX. Dentre tantas novelas, destaca-se Terra Nostra, de 1999, que mostra com riqueza de detalhes os distintos mundos construídos e vividos pelos italianos no Brasil, da vida luxuosa nos casarões da Avenida Paulista ao duro trabalho nas plantações de café que, com o fim da escravidão, depositou parte do seu desenvolvimento na mão-de-obra do imigrante italiano.

Ana Paula Arósio e Tiago Lacerda em “Terra Nostra”. Divulgação Globo

Outra obra que marcou a teledramarturgia brasileira ao mostrar o cotidiano italiano no Brasil, com suavidade e um encantador bom humor, foi a minissérie ‘Anarquistas Graças à Deus’, adaptada do livro com título homônimo de Zélia Gattai. Nesse livro, a escritora retratou com delicadeza os sonhos e as dificuldades de vida de sua família em São Paulo, nos anos 1920. A história da família Gatai ilustra um pouco do dia-a-dia de imigrantes italianos que vieram de diferentes regiões da Itália, cuja formação cultural e as expectativas eram distintas mas, que no Brasil, construíram uma vida ítalo-brasileira. Ernesto Gatai veio da Toscana, era apaixonado por carros, dono de uma oficina mecânica, motorista particular de famílias abastadas de São Paulo e tinha ideias anarquistas. No Brasil, conheceu Angelina Da Col imigrante italiana católica, que viera com sua família do Vêneto para trabalhar nas fazendas de café em São Paulo. Casaram-se e tiveram cinco filhos, cuja caçula era Zélia Gatai.  

Diferentemente das histórias da imigração em São Paulo, que em geral mesclam a grande urbanização e o meio rural, as contradições sociais, o forte crescimento da indústria e do comércio, a imigração italiana no Rio Grande do Sul ganhou tons heróicos. Essa característica pode ser explicada pelo fato de que as narrativas individuais, que apontavam as dificuldades vivenciadas nos primeiros tempos da colonização na serra gaúcha, são generalizadas e têm como resultado histórias de superação. Com o passar do tempo, os próprios imigrantes italianos construíram caminhos distintos em terras gaúchas, fossem os chamados “colonos rurais” (que ficaram na dura vida rural); fossem os que construíram uma identidade de “colono progressista” (que se transformou em industrial) e que fizeram da colônia um espaço urbano civilizado e institucionalizado.

Escritora Zélia Gattai

Por outro lado, a relação Brasil-Itália não está vinculada unicamente ao exuberante passado cultural que une os dois países. Ao longo do século XX, construiu-se uma densa relação econômica, comercial e diplomática. Conforme aponta a Fazcomex, o Brasil é o principal mercado para as exportações da Itália na América Latina.

Segundo a Revista Exame (publicada em maio de 2022), a Itália é o segundo país europeu do qual o Brasil mais importa produtos enogastronômicos, atrás apenas de Portugal. Dentro os produtos estão massas, vinhos e azeites, como também biscoitos waffle e tomates em conserva. No acumulado de 2021, o Brasil importou 238,3 milhões de dólares, um crescimento de 3% em relação a 2020. Somente no primeiro trimestre de 2022, o valor de importação alcança 74,5 milhões de dólares.

Do ponto de vista diplomático, Brasil e Itália têm acordos importantes que fortalecem a relação entre os dois países, tais como:  Acordo de Migração Brasil Itália, de 1960; Acordo de Segurança Social Brasil Itália, de 1974; Convenção Para Evitar a Dupla Tributação, de 1978; Tratado de Cooperação Judiciária e Reconhecimento e Execução de Sentenças em Matéria Civil, de 1989; Acordo de Co-Produção Cinematográfica Brasil Itália, de 2008.

Por fim, considerando as análises históricas e a ampla documentação desta aventura em terras tropicais, observa-se que os imigrantes italianos formam o grupo que mais facilmente se integrou ao Brasil. Hoje, após mais de duzentos anos depois do início de uma rica hibridização cultural, os brasileiros que chegam à Itália – tendo ou não ascendência italiana -, podem dizer com muita facilidade “me sinto em casa”.

Bandeira da Itália

Artigo elaborado e escrito pela Profª. Dra.  Ana Regina Falkembach Simão, Professora e Coordenadora de Relações Internacionais de ESPM/POA